Quis Escrever

Quis escrever. 

Comecei a esgravatar a folha branca à espera de desenterrar palavras esquecidas, mas foram saindo apenas letras soltas, descompostas. «Com isto não faço nada», pensei eu, transparecendo frustração no meu respirar. Decidi bater no caderno, como quem bate numa televisão, procurando limpar a estática que perturba a imagem. Queria mandar embora o branco que escondia o texto que eu ainda não havia escrito. Bati, bati, mas o branco ficou, nem uma palavra se viu. Enervei-me. Sacudi as páginas do caderno, como quem sacode uma toalha de mesa, cheia de migalhas, e nem um ponto final saltou. Desesperei.

Levantei-me. Caminhei aos rodopios pela casa. Nada me angustiava mais do que querer escrever e não conseguir. O formigueiro, que me começava nos dedos, subia pelos braços e apertava-me o pescoço, apertava-me o peito! As palavras que tinha por escrever entupiram-me as ideias e eu não conseguia fazer mais nada. Precisava apanhar ar. 

Abri a porta. Saí. Não levei sapatos nem casaco. Caminhei sem destino. A minha pele arrepiou-se. O meu cabelo emaranhou-se. Enchi o peito o mais que consegui, e finalmente expirei. Saiu ar e saíram lágrimas. Deixei que escorressem, que me desenchessem. Surpreendi-me: tinha em mim mais lágrimas do que pensara. Atrás das lágrimas, começaram a escorrer letras, depois palavras, depois frases. Corri para casa. Agarrei as folhas brancas e comecei a limpar os olhos com elas. Os parágrafos iam-se escrevendo e o meu sorriso ia regressando. 

Quando os meus olhos secaram, reli as páginas amachucadas, passei-as a ferro, alinhei-as e encadernei-as. Por fim, abri a janela e atirei-as ao vento, cheia de esperança. 

E tu. 

Tu apanhaste-as. 

E, agora, estás a lê-las!

Diz-me: também tu sentes o formigueiro que começa nos dedos?  

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