Quimera
Na aldeia dizia-se que nascera amaldiçoada. Insistiam que a mãe fizera um pacto com o diabo e que por isso a filha nascera composta por retalhos de almas de outros. Um olho azul, o outro avelã: um vislumbre para a quimera monstra que se escondia dentro, disfarçada de pureza com a sua pele clara. Os cabelos teciam um emaranhado ruivo que brilhava como chama quando a luz lhe tocava. Para os da aldeia, claro está, aquela fora apenas mais uma prova de que a mãe dançara despida com Satanás numa floresta de árvores mortas em noite de lua cheia ― a prova que faltara para finalmente se poderem livrar dela.
Certa manhã, armados de foices e forquilhas, arrancaram-nas da cabana onde moravam: chegara o dia do julgamento. Sem defesa possível, foram postas no estrado. Apontaram-lhes o dedo tecendo acusações paranormais ― uma mulher independente e com ideias próprias só podia ser esposa de Lúcifer. Arrancaram-lhe a filha dos braços, dizendo que a criança precisava da proteção do Espírito Santo. Tanto a mulher como a criança choraram e imploraram, mas não foram acudidas. Os jurados preferiram insultar a mulher, desdenhando da magia que insistiam que fazia com os livros antigos que mais ninguém da aldeia sabia ler. Orgulhosos com o caso que montaram, entregaram a sentença e, quando a noite chegou, a mulher foi levada para a pira que fora construída para que todos pudessem testemunhar a justiça ser consumada. Os olhos desemparelhados da filha arderam com a mãe, memorizando o rosto dos que foram culpados por aquela desgraça. A pequena chorou uma promessa de vingança que os seus braços e pernas demorariam a poder concretizar, enquanto os seus cabelos pareciam dançar com as chamas que faziam dela órfã de mãe.
Uma década depois, braços, pernas e ideias desenvolvidas, tinha força para correr descalça pela floresta de árvores mortas, sem fazer caso das pedras que pisava, nem das histórias que a aldeia imaginava agora a seu respeito. Piscava os olhos desirmanados aos miúdos e deitava a língua de fora aos graúdos. Chamavam-lhe filha de bruxa e ela não desmentia. Preferia que a temessem, que não ousassem levantar-lhe a mão. E se um dia terminasse na pira, como a mãe, sabia que morreria feliz.
Era agora, nestas noites, depois de ler os mesmos livros antigos que a mãe lera, que vestia manto e capucho negro, escondendo a cabeleira rubra e a pele de porcelana. Silenciosa, saía da cabana que era só dela. Discreta, pendurava-se nas janelas daqueles que haviam roubado a vida à mãe. Espreitava e esperava, fixando o olho azul e o olho avelã no peito de quem dormia indefeso na cama, murmurando palavras aprendidas nos livros que herdara. Assim, uma noite e um culpado de cada vez, via o ar sair-lhes do peito e o corpo esfriar depois de lhes roubar a vida.
Na aldeia, ninguém parecia desconfiar. Por enquanto, aceitavam a fatídica sina de cada um sem se lembrarem de que, talvez, ela fosse a ceifeira. Talvez por ser ainda jovem. Talvez por terem temido mais a mãe do que temiam a filha.
Executada cada vingança, sorria, e, antes de seguir caminho, baixava os olhos ímpares e fazia uma vénia profunda, orando:
― Espero que estejas orgulhoso de mim.
Nas sombras, uma figura alta cornuda, metade cabra, metade homem, batia os cascos no chão de pedra, lambia as barbas com a língua bifurcada, arregalava os olhos desemparelhados, ― um azul e o outro avelã ― e rosnava em aprovação.